Desafio:
Ligar S.P. de Rates, aldeia próxima de Póvoa de Varzim, a Santiago de Compostela, em bicicleta. Cerca de 200km, divididos em 3 etapas (dias), percorrendo o Caminho Português de Santiago, sem auxilio de track de GPS, apenas seguindo as marcações no local.
Etapa 1 – 5/10/2013
S.P.Rates – S.P. Rubiães (70km) Anunciando já o final da história, já percorri milhares de quilómetros e inúmeros caminhos, mas caminho mais bonito ainda não fiz.
Esta aventura foi partilhada com mais 8 amigos (incluindo com prazer o meu Pai e a Liliana), 5 a andar e 4 a apoiar. Começou com a ligação por carro, entre Abrantes e a bonita aldeia de S.P. de Rates, na véspera do dia da verdadeira ação. Chegamos por volta da meia noite ao Albergue de S.P. de Rates. Aqui começou a aventura. Albergue lotado e já tudo a dormir. Os Albergues do Caminho têm um política de porta aberta e como não existia outra opção, cada um tentou encontrar um cantinho no Albergue para tentar enganar o sono. A mim calhou-me o corredor entre os quartos e a casa de banho. Colchão no chão e vamos embora à aventura de tentar dormir, entre umas quase pisadelas de peregrinos que iam fazer a ronda noturna à casa de banho e uns ressonares sinfónicos de uns peregrinos com muitos quilómetros nas pernas, lá dormi com um sorriso de satisfação. Tudo isto é o Caminho e o espirito peregrino.
O primeiro dia de Caminho começou bem cedo, arrumar a trouxa, comer qualquer coisa, comprar as credenciais de peregrino na mercearia da esquina e finalmente seguir Caminho. Poucos minutos de pedalada e já dava para perceber o que me esperava. Trilhos magníficos. Com Sol a dar o seu primeiro brilho, por entre vinhas cuidadosamente alinhadas, já tinha esquecido a dor nas costas que a cama improvisada me tinha provocado e seguia bem feliz a contemplar a bela paisagem. Seguia tão absorvido pela paisagem, que inaugurei a secção das quedas logo ao km 5 nada demais, mas um aviso para não descuidar e não absorver demasiado e olhar também para a estrada :).
Passagem pela cidade de Barcelos e apontar caminho para Ponte de Lima, local de paragem para o almoço. A entrada em Ponte de Lima é feita por autênticos túneis de vinhas, carregadinhas de belas uvas prontas a apanhar, de vez em quando lá esticava o braço e lá vinha um belo cacho de uvas (vantagem de fazer o Caminho em altura da vindima), dando um lado gastronómico à aventura :). Chegado a Ponte de Lima, cidade muito engraçada, que vale a visita mais prolongada, foi tempo de esticar a perna num relvado junto ao rio Lima e degustar o belo lombo feito pelo o amigo Nuno (lombo que nos acompanhou até final da viagem :)).
Refeito do almoço mas sem tempo para a digestão, foi altura de atravessar a ponte sobre o rio Lima, outrora a única passagem segura do rio Lima e já local de passagem, na época medieval, dos “meus” antepassados peregrinos a caminho de Santiago. Nesta altura com cerca de 2/3 de etapa concluída, já antecipava o restante 1/3, um dos troços mais duro e mais belo de todo o caminho. A mítica Labruja já se fazia sentir e já se deixava ver no horizonte. Passagem por umas povoações escondidas do Mundo, mas com grande encanto, vinhas com fartura, calçada romana a servir de tapete e espaço delimitado por pequenos murros de pedra cuidadosamente alinhados. Duas ou três rampas em calçada romana para aquecer a perna e era tempo de entrar “a sério” na Labruja. Primeira subida por autênticos bosques, doeu um bocadinho, e pensei..”será que é isto a Labruja?..nem é assim tão complicado”. Segunda subida, vamos embora, cheguei ao fim quase sem ar e pensei..”bolas que isto é a doer a sério”.
Terceira subida, pensei antes de subir…”isto é impossível de subir!”, e assim foi, bicicleta na mão, era altura de ela passear :). Quarta subida, pensei antes de subir..”isto é impossível de subir mesmo com a bicicleta na mão!”, e bicicleta passou para as costas :). Subidas íngremes e muita pedra, torna a coisa difícil para o bicigrino, mas a beleza natural, o encanto do silêncio, o musgo mais verde que já vi e que nunca viu Sol, tudo isto compensa verdadeiramente os cerca de 7km que andei com a bicicleta às costas. Pelo meio uma singela homenagem à malta que sobe esta serra de bicicleta ou a pé, a Cruz dos Mortos, pois quem chega lá já vai quase morto sapatos, cachecóis, pedras, tudo e mais alguma coisa a servir de altar para a cruz.
Passada a Labruja, poucos kms ficaram a faltar para completar a etapa. Minutos depois chegava a Rubiães, aldeia do concelho de Paredes de Coura, local de pernoita. Depois foi encontrar o Albergue, onde já nos esperavam a nossa team de apoio. Ao contrario da noite passada, desta vez tínhamos um quarto reservado para o nosso grupo. Deu para descansar mais um pouco . Este Albergue bastante simpático, antiga escola primária lá da zona, totalmente requalificado. Tomar banho, lavar a roupa, jantar em Paredes de Coura e dormir. Amanhã é mais um dia.
Etapa 2 – 6/10/2013
S.P. Rubiães – Pontevedra (70km)
Depois da anunciada noite bem dormida, era tempo de iniciar mais uma etapa, apesar do bom tempo e agradável temperatura de inicio de Outono que acompanhou a toda a viagem, os ares de Paredes de Coura não perdoam e a manhã estava um gelo. Nada que umas boas pedalas não resolvam :). Apontar caminho para Valença do Minho. Dizer passagem bonita, poderia ser um espécie de virgulas nestes textos, mas verdade seja dita, que paisagens bonitas se encontram neste caminho. Encontram-se diferentes caminhos, subidas e descidas, diferente vegetação, diferentes culturas e até diferentes países, mas ao longo do caminho, a paisagem bonita é uma constante. E assim foi, galgar kms até chegar a Valença, cidade fronteiriça, marcada bela fortaleza que “engole” a cidade, o caminho passa por lá, sempre bem marcado, foi seguir por dentro da fortaleza, pelo bonito centro histórico, por túneis, por jardins, bom caminho. Na saída da fortaleza, marcada por um ziguezague entre muralhas e no final, como boa fortaleza que era tinha uma porta (para evitar que espanhóis entrassem, calculo eu ), passada essa porta, uma enorme escadaria a “desaguar” na estrada nacional, como a confiança é o meu nome do meio, lanço-me escadas a baixo, rabo fora do selim, como qualquer bom executante de downhill. Esta-se mesmo a ver o final da história. Valente queda no final da escadaria :). Que por sinal era irregular e não propicia a grandes aventuras. Valeu-me o capecete. Uns arranhões, um casaco roto (o pior :)) e uma história para contar (o melhor :)). Em seguida e já recuperado da queda, foi passar a ponte sobre o rio MInho e chegar à vizinha Espanha, mais concretamente à cidade de Tui.
É engraçado como a mente engana as pernas. Apesar das distâncias, apesar das subidas, apesar das noites mal dormidas, o cansaço não chegou até mim, nem aos meus parceiros de viagem. As paisagens, o ambiente peregrino, o querer saber o que vem a seguir, tudo isto absorve-nos de tal maneira, que o cansaço não
vence a mente. É curioso isto.
Grande parte desta etapa foi feita já em solo espanhol, não sei se por ser peregrino (grande negócio para aqueles lados) ou mesmo por o povo ser assim naturalmente (acho que sim :)), o povo galego mostrou-se extremamente afável, sempre pronto para soltar um “bon camino” a quem passa ou para um sincero sorriso. Pareceu-me um povo mais próximo do português do que do espanhol de Madrid :), até o castelhano parecia menos castelhano. Gostei.
Nesta etapa tivemos como companheiras constantes, as rias galegas, a água trás consigo vistas deslumbrantes, muitas vezes a seguir à curva lá estava a Ria de Vigo ou de Pontevedra. Muito bonito. Destaque também para a construção romanica da região, super bem cuidada, formando um bom mix, o cinzento da pedra com o azul da água. Dou como exemplo a aldeia de Arcade, capital da Ostra (segundo o pessoal lá do sitio), entrada na aldeia por uma bonita ponte arcada, formando ali a ria um espécie de Baía. Ao entrar na aldeia um autêntico labirinto em pedra, onde nas brechas se conseguia ver a ria. Muito bom.
O final de etapa foi em Pontevedra, uma cidade muito interessante, cerca de 100.000 pessoas, com tudo o que o que um grande cidade tem, mas também com raízes culturais fortes e bem visíveis. A dormida foi o Albergue oficial do Caminho mesmo à entrada da cidade. Ao contrário dos Albergues em Portugal, com sentido comunitário e público, em Espanha, os Albergues pertencem a privados, com uma visão de negócio bem diferente e mais “profissionalizado”, mas sem perder o traço do espirito peregrino. Chegados ao Albergue, compramos a nossa estadia, 6€ pessoa (em Portugal é donativo), como que de um bilhete de autocarro se tratasse, verifiquei o meu número e lá fui à procura do meu lugar, num quarto gigante com lugar para cerca de 50 peregrinos, em beliches. Banho tomado e procura do primeiro bar para provar a cerveja local Estrella Galicia, bem boa acompanhada com umas tapas, belo final de etapa.Na ida para o jantar, aproveitamos para conhecer o centro histórico de Pontevedra, super bem cuidado, onde a pedra e o cinzento impera. Jantamos num restaurante bem simpático, a mim calhou-me um belo arroz de polvo, regado com vinho da região. Venha a próxima e derradeira etapa.
Etapa 3 – 7/10/2013
Pontevedra – Santiago de Compostela (70km)
Dia 7 é dia de aniversário da minha mãezinha e acordei a pensar nela :). Mais um dia a levantar bem cedo, cerca das 8h da manhã já em cima da bicicleta. Arranque para a última etapa, ainda meio atordoado da noite anterior, pois os vizinhos peregrinos não deram tréguas e parece que fizeram um verdadeiro concurso inconsciente para ver quem ressonava mais alto :).
O Caminho sempre que passava por uma cidade, conduzia-nos pelo seu centro histórico e Pontevedra não foi exceção. Na noite anterior já tinha gostado do centro da cidade, mas nesta manhã ainda gostei mais, que bonito centro histórico esta cidade tem. Como diz o ditado “o Caminho faz-se caminhando…” e somos seguindo sem pressa de chegar. A próxima cidade de passagem foi Caldas de Reis, onde fomos aglutinados pela feira local, muito giro. O Caminho passava mesmo no meio da feira e lá foi seguir por entre cuecas e meias, couves e presuntos :).
Esta etapa final, a mais plana de todas, estava ser desfrutada lentamente (amanha não há mais :)), deu para uma paragem em um café/mini-mercado local para mais uma incursão gastronómica, uma bela empanada e um sandes de jamon, acompanhado de uma cervejita. Valeu milhões :). A próxima paragem seria Padrón, onde a team de apoio nos esperava para o almoço. Na chegada a Padrón notamos na team um entusiasmo diferente, tinham conhecido um belo exemplar lá da terra, o Pepe de los Bicos, dono uma tasca recheada de camisolas de todo mundo, oferecidas por peregrinos. Lá conhecer o Pepe, que personagem, um comediante de primeira, que me brindou com beijo na testa, numa espécie de benção papal, adequado ao caminho. Muito bom.
Passado o almoço em Padrón e a cerca de 20km de Santiago, até sentia um friozinho na barriga, a recordar os meus tempos de jogador. Como o Caminho não facilita, mesmo na parte final fomos brindados com autênticos bosques dignos de um qualquer filme épico de Hollywood. Mas Santiago estava logo ali à espreita. Ao entrar a área urbana, logo uma valente subida para queimar as últimas calorias. Santiago é uma cidade grande e o Caminho leva-nos por uma das principais avenidas da cidade, até parece igual a tantas outras. O boom dá-se assim que entramos no alto de Santiago, na sua zona histórica. Magnifico! Como os rios desaguam no mar, todas as ruelas (e são muitas!) desaguam na Praça Obradoiro, na Catedral de Santiago. A construção em pedra, os milhares de peregrinos a chegar, o comercio de Santiago o mover-se, tudo isto, sempre a ver a Catedral aproximar-se e assim que se chega a praça, dá aquele arrepio, do desafio concluído, da experiência, da carga do Caminho, do espirito peregrino. Era tempo de lagar a bicicleta, umas fotos de grupo, um olhar mais atento para a Catedral, um tentar adivinhar de onde vinha este ou aquele peregrino. Mas o caminho ainda não estava terminado, faltava ir até à oficina do peregrino e recolher a Compostella, documento que certifica a nossa jornada. E está feito.
Como o regresso a casa só era no dia seguinte, ainda houve tempo de desfrutar um pouco de Santiago, sem ter de pegar na bicicleta no dia seguinte.
Uma bela aventura. Altamente recomendada. Consegue juntar o desafio, o desporto, a cultura, a Natureza, tudo mixado de uma forma bem fluída e bastante enriquecedora. A pé, de bicicleta, o importante é ir. Um muito obrigado aos meus comparças de viagem, ao Pedro, ao Nuno, à valente Guida, à Carla, à Anabela, ao mestre Pedro (Bife) e em especial à minha Liliana (como se não bastasse me aturar todos os dias :)) e ao meu amigo Pai.
“O Caminho faz-se caminhando…”
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